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Imorrível lançou há meio século clássico da black music brasileira

Há que se salientar ainda os adjetivos dirigidos a Di Melo. Uns o classificam de imorrível, enquanto ele próprio acredita que nada lhe é impossível

Di Melo, o imorrível - Foto: Divulgação Di Melo, o imorrível - Foto: Divulgação

Então, ao bater perna pelas ruas, você se dá conta do indispensável: hoje, pelo menos hoje, 22 de março de 2025, mesmo para a mais descrente das criaturas, é preciso ter fé na música. Di Melo, o imorrível, o soulman recifense, o artista polivalente, tocou no Shiva Alt Bar.

Foi realmente uma festa intimista, um sextou em grande estilo, o ensaio pré-show. O Shiva abriu às 17h para o público assistir aos ajustes finais. Nicolas Deretti assumiu a guitarra, enquanto Emanuel Pregnolatto pilotou o baixo e Jean Ramos comandou a bateria.

Sim, o bardo recifense se juntou a três músicos goianos. Tudo certo entre eles: show em cima. Não é uma missão tão simples assim, pelo contrário. Celebra-se a obra com a qual Di Melo debutou no cenário musical. Gabi Di Abade, filha do artista, também cantou no Shiva.

Di Melo bafeja em meus ouvidos sua “Conformopolis” (ouça abaixo). “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma rotina, no mesmo lugar”, relata o artista, na quarta faixa do disco lançado em 1975. “Escritório, chefe, o cartão pra marcar/ O magro sanduíche engolido num bar.”

Consciência proletária do homem inserido na sociedade capitalista. Sai o timbre metálico da seção de sopro, baixo sapateante abrilhanta tudo: funkão sacolejante, emancipatório, cordas charmosas, suingadas, acordes nem exagerados nem comuns. A batera segura o ritmo.

O bardo está falando coisas tristes, dizendo da vida em seus métodos calmos e, de repente, eis que ele sapeca uma canção romântica desconcertante. “Sou fantasma errante, não consigo parar/ Rumo a ideias ou novos horizontes/ Mas certo de você, desejo lhe encontrar”, canta.

Quem o descobriu foi a cantora carioca Alaíde Costa. Por uns trocados, ele se apresentava no bar Jogral, em São Paulo, onde Jorge Ben, Maysa e Adoniran Barbosa encantavam plateias com suas músicas. Findo o show, Costa levou o rapaz talentoso para a Emi-Odeon.

Simpático a James Brown, Jimi Hendrix, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, o bardo recifense fez as malas e se mudou para São Paulo no fim dos anos 1960. Ali, caiu na noite atrás de trabalho até gravar o elepê “Di Melo”, cuja idolatria dos fãs o tirou de catálogo.

Em 2002, dentro da coleção “Odeon 100 Anos”, o baterista Charles Gavin coordenou nova edição da obra. Na perspectiva sonora, como se escuta na primeira faixa, “Kilario”, o clavinete aparece suntuoso. Era um instrumento raro na música brasileira, embora fosse utilizado por lendas do soul e funk americanos dos anos 1970, caso de Stevie Wonder.

Para os padrões da época, o elepê foi bem gravado. O som reluz, impacta, e sobretudo impressiona. Pudera: a ficha técnica informa timaço de músicos no estúdio. Heraldo do Monte tocou viola e violão, Hermeto Pascoal, flauta e teclados, e Cláudio Beltrame, contrabaixo. Os arranjos, orquestração, regência e violão têm dedo de Geraldo Vespar.

Há que se salientar ainda os adjetivos dirigidos a Di Melo. Uns o classificam de imorrível, até mesmo imortal, enquanto ele próprio acredita que nada lhe é impossível. Acima de qualquer suspeita, o artista se destaca pela versatilidade criativa, a mesma com que despontou nos anos 1970 fazendo um som que ia do popular ao tango, do samba-rock à MPB.

Apesar da evidente qualidade, o disco debutante não se materializou em dinheiro no bolso. Di Melo se achou “um imbecil” quando recebera o pagamento pelos direitos autorais. No filme “Di Melo, o Imorrível”, lançado em 2011, o artista explica aos cineastas Alan Oliveira e Rubens Pássaro que a insatisfação produzida por esse episódio fez com que se afastasse da música.

O que eu tava a fim eu sentia que eles não queriam fazer. E o que eles queriam que eu fizesse eu também batia o pé e dizia: ‘eu não tô a fim’” Di Melo, soulman recifense

Insatisfação

“Eu tinha meu disco tocando, eu tinha música com Wando naquele disco que tem ‘Moça, Me Espere Amanhã’, que estourou. Todo mundo sabe. Fui receber 11 cruzeiros. Aí você diz: ‘vou fazer o que pra uma pá de filha da puta desses?’ Aí pinta o quê? A revolta”, conta o artista, que se voltou às artes plásticas para não fazer discos chatos ou ter de tocar na noite.

Di Melo lançou em 1990 o disco caseiro “Distando Estava” no selo Camerati, gravado com os músicos de Belchior. “O que eu tava a fim eu sentia que eles não queriam fazer. E o que eles queriam que eu fizesse eu também batia o pé e dizia: ‘eu não tô a fim’.” Só retornaria aos holofotes nos anos 2010, quando publicou pela Casona Produções o disco “Imorrível”.

De 2016, a obra traz participações especiais de BNegão, Larissa Luz e tem uma parceria de Di Melo com Geraldo Vandré. O bardo se juntou ao grupo francês Cotonete. Sua obra, aliás, goza de alta popularidade na Europa, especialmente o disco “Di Melo”, o queridinho dos DJs por lá. Em seguida, saíram “Atemporal”, de 2019, e “Podível e Impodível”, de 2021.

Se muita gente o deu como morto — sofrera um grave acidente de moto nos anos 1980 —, Di Melo está vivíssimo. Bem-humoradas e sagazes, suas letras pinçam situações corriqueiras do cotidiano da sociedade de consumo, como na canção “Se o Mundo Acabasse em Mel”, do álbum de 1975: “Entrou em choque publicitário.” Apreciemos esse lendário artista - sempre.

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